Memorex"Vrumm vrumm vrumm", o vento, gosto de ouvir o som da ventania, a agitação do ar numa corrida desenfreada que me enlouquece perdidamente e faz girar os fios do meu cabelo como uma avalanche. Os meus olhos miram a energia impulsiva da aragem no campo, o sussurrar melódico que me abraça de ternura naquela linda manhã.
A alvorada de todos os sons, a origem das pautas toadas em cada espaço povoado atraído por uma orquestra instantânea, e o meu mundo auditivo era pequeno demais para aquela imensidão onde o pulsar das ervas daninhas faziam vibrar no horizonte, uma musicalidade revigorante.
Contemplada na beleza da paisagem, a brisa gelada acarinhava a face e as bochechas rosadas tinham ganho cor, no lugar remoto podia aperceber a abundância da água, uma ribeirinha a circular com firmeza no castanho agreste de carícias.
Contida no carpido do pranto, fiquei sem saber o que dizer senão vislumbrar o panorama da Natureza, a perfeição dos tons, o céu alaranjado e os murmúrios dos pássaros. Parecia-me um sonho inacreditável e ilusório, fitada em pensamentos a sentir as sonoridades a penetrar em mim num só corpo serpenteando nas extremidades da cóclea até á ponta do véu, o nervo auditivo.
Acompanho o ritmo da minha respiração, vai e vem, expiro e inspiro numa simplicidade, uma festa sensorial quase mágica.
O som da vida, o som do ar que sai do meu próprio corpo, do nariz e boca expelindo o dióxido de carbono envelhecido para o mundo. Senti a energia a flutuar em mim, a tenebrosa magia de encantar o som do silêncio.
Inesquecível!
Hoje, sim hoje sozinha em casa a ver um filme na sala ouvi o telemóvel a tocar, e vi que era a minha mãe então atendi com a ténue segurança, embora um pouco receosa disparei um "olá", e consegui ao mesmo tempo ouvir o motor do carro, sinal de que estão dirigindo para casa e as palavras dela fluíram com o "está tudo bem?"
Assenti, "sim está tudo bem e por aí?" e noutro lado a voz soou "também, até já e beijinhos", naturalmente uma forma de despedida respondi com o "até já".
Desliguei a chamada, fiquei a olhar para o telemóvel em breves momentos, assombrada!
Indescritíveis, ninguém é capaz de sentir esta imensidão da mesma intensidade que estou a viver e saboreio até á exaustão depois de vinte anos em silêncio, escuto coisas cujas pessoas normais ignoram indiferentes, com o olhar vago e perdido dentro de uma cicatriz interminável chamado umbigo. Às vezes penso, deveria existir um livro de auto-ajuda "Os Prazeres da Audição" e alegrar um pouco as suas vidas!
Hoje, há um ano foi o dia em que conheci o neurocirurgião F.R e a Dra.S na primeira consulta de Coimbra e fizeram o impossível a tornar-se realidade.
Ao virar, e depois de ler os capítulos das diversas cantigas tradicionais, sorriu. Convidou-me a vasculhar também, por fim perguntou se conseguia lembrar-me, ou se as letras soavam familiar? Não, não me recordo, nem pequenos fragmentos sonoros. Foi há muito tempo!
Tu ouvias muito estas canções e adoravas, punhas logo a dançar. A sério? O que achas levarmos esse, pode ser que reactive a memória auditiva inconscientemente?
"Bom Barqueiro"
"O balão do João"
"Era uma vez um Cavalo"
"Naquela Linda Manhã"
"Iôiô"
….
De regresso á minha infância, a de ouvinte nos curtos dois anos.
O sol ofuscou a minha visão com os seus raios luminosos a penetrar no céu tão azul sem nuvens. Havia poesia no meu olhar e a música das cores fazem-me planar do chão. Ando depressa, cada vez mais afastada dos prédios, do supermercado, dos cafés barulhentos e lotados, de gentes conhecidas e de carros que ali passavam, na avenida do idealista.
Ouço passos, os meus, dos ténis esborrachados na calçada de pedras soltas e ruídos á minha volta, tantos e diferentes, específicos e reflectidos. Ladrares de cães noutro lado, provavelmente vindo dos apartamentos que tem a janela da varanda aberta, continuo a andar no passeio de olhos fechados em apenas segundos, apurei ainda mais a minha audição. Mais nítidos e intensos.
Gosto de me sentir assim, florescer a emoção, um arrepio pulsante, a alegria desnudada e um sorriso esboçado, pouco me importa que seja uma criança com os pés descalços a correr pelo atalho onde quase ninguém costuma ir, um pequeno descampado verdejante, árvores de frutos com sombras, as cigarras a entoar e pequenos pardais poisados em troncos de madeira. Uma cabana abandonada. O vento.
Melodias para o meu mundo.
